Sobre um poeta que gostava de escrever pela manhã. Segundo a sua teoria, a manhã era o melhor momento para a inspiração artística:
O corpo ainda não se acomodou à estranheza da vida real. Os sonhos estão frescos. Nossos olhos e ouvidos ainda não foram contaminados por qualquer coisa dos homens. Vivíamos há muito num universo só nosso, que, de tão nosso, nem reconhecíamos como tal.
Portanto na manhã, dizia ele, é consideravelmente mais fácil captar aquela fagulha de vida que nos falta ao meio-dia e que temos de sobra à noite. De manhã nossos olhos e ouvidos ainda não foram corrompidos por todas aquelas imagens e sons que a humanidade produz e que à noite já atrapalham, envenenam e modificam o trabalho do poeta.
De manhã posso levantar em segredo, quando o mundo ainda não se deu conta de mim. Ou posso me demorar por um ou dois instantes e prolongar essa omissão. Posso sentar sozinho, comigo mesmo, e matutar ou remoer. Quando vejo, os versos aparecem pequenos, ainda sem muita ousadia, mas certamente seguros e que logo vão dando outros versos, desta vez mais soltinhos..."
O que o poeta não sabia (e morreu sem saber) é que todo aquele trabalho poético matinal, que ele não só produzia como lia e relia, recortava e copiava, riscava e recitava às palmas, já era imagem e som da qualidade mais humana que havia.
Acabou contaminado, corrompido, atrapalhado e envenenado por si mesmo. Seus poemas ficaram ilegíveis. Se matou de desgosto, quando ainda era manhã.