quarta-feira, 27 de junho de 2012

Quão Bregas Nossos Sonhos Podem Ser


Quando assisti ao primeiro episódio de Glee, a série ainda não era conhecida. Lembro de ter lido alguns comentários na internet sobre o que parecia ser o programa mais cool do momento e ficado curioso, porque qualquer coisa que envolvesse adolescentes ou música me interessava muito. Comecei a ver sem fazer ideia do que esperar e, quando dei por mim, estava chorando na frente do computador. Isso foi em 2009, ano em que Don't Stop Believing liderou o ranking de execuções no meu iPod.

Muito tempo passou, a série se consolidou como um sucesso teen, ganhou fãs, vendeu discos, cresceu e piorou. A segunda temporada foi difícil de assistir. Com um enredo cada vez mais perdido, onde as tramas eram visivelmente manipuladas com o único objetivo de inserir canções famosas no repertório, Glee parecia não ter mais salvação. Era difícil encontrar um episódio tão agradável quanto os da primeira temporada, onde tudo era mais natural e verdadeiro. A terceira também não foi excelente. Alguns personagens muito bons sumiram, outros muito ruins ganharam destaque e as coisas foram mudando de lugar. Por isso (e pela má vontade de uma gente um tanto implicante) a série virou piada. E o sinismo foi tomando conta de tudo como uma epidemia.

Ontem terminei de ver a terceira temporada e fiquei feliz por ela ter acabado com dois dos episódios mais bonitos de todo o programa. Alguns dos personagens principais estavam se formando, então o clima era de despedida; e alguns flashbacks do primeiro episódio fizeram todo aquele encantamento de 2009 voltar. Pude perceber como foi legal acompanhar esses meninos rejeitados, humilhados e confusos, e suas descobertas através de um coral numa escola pública do interior dos EUA. De um jeito ou de outro, cada um deles havia mudado, aceitado suas diferenças e transformado suas vidas. A treinadora casca grossa agora torcia pelo sucesso do grupo, a orientadora paranóica resolveu dar uma chance ao que antes considerava sujo, o pai homofóbico dançou Single Ladies pro filho gay e os valentões, em vez de jogar raspadinhas na cara dos excluídos, jogaram confetes.


Acho que Glee, por mais problemática que seja, carrega consigo alguns méritos. Não só por ter sido a primeira série musical a dar certo em anos, mas por ter dado voz a toda uma geração de jovens atormentados pelo bullying que, através de Finn, Kurt, Santana, Artie ou Mercedes, puderam sonhar com o dia em que não precisariam mais se esconder. E ninguém melhor que Rachel Berry pra traduzir tudo isso. A menina com mania de estrelato, que gostava de colar estrelinhas douradas ao lado do seu nome e era ridicularizada por quase todos os colegas, termina sua trajetória com uma vaga pra estudar na Broadway.

Todos nós tivemos alguns desses sonhos cafonas quando crianças. Ainda não tínhamos sido contaminados pela epidemia do sinismo, nosso futuro parecia brilhante e nada era tão difícil. Com o tempo, a gente vai se esquecendo de lutar, vai andando pelo caminho mais confortável e quando percebe, não existe mais sonho nenhum. Nos damos por satisfeitos com nossos gabinetes abafados e trabalhos desinteressantes e seguimos com a vida, buscando aspirações menores e mais fáceis. Somos todos Rachel Berry. Tínhamos sonhos ridículos e colávamos uma estrela dourada ao lado do nosso nome, exatamente como ela. A diferença é que no último episódio da nossa terceira temporada, em vez de ir pra New York, preferimos ficar em Ohio.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Olhos nos Olhos


Gosto particularmente de como o universo se transforma depois de certa hora da madrugada. Não é que a nossa percepção do mundo fique alterada, mas é que o próprio mundo vai se alterando e se revelando todo cheio de percepções sobre nós. E o silêncio é tanto que qualquer um pode ouvir meus pensamentos, vagando pelas cobertas
. E depois das 3 eles eclodem como berros, acordando o Caetano no quarto ao lado.

Às vezes vou pra cama com uma música, pra abafar as memórias, e elas sempre me parecem bem mais reveladoras quando sussurradas no meio da noite. Saem do fone de ouvido feito lanças, furam meus tímpanos e jogam ali dentro todas aquelas verdades inconvenientes que a gente cria pra encaixar uma canção aleatória na vida da gente. Pra ver se consegue explicação pra esse tanto de erro absurdo e infantil.

Ontem perdi alguns minutos ouvindo uma coletânea da Maria Bethânia e encontrando milhares de respostas, concordando com quase tudo e sofrendo mais que o normal por umas letras bobas, quase cafonas. Percebi  como Tatuagem é linda, como Explode Coração é pornográfica, como é difícil dormir depois de Minha História e como Olhos nos Olhos é a coisa mais cruel que o Chico já escreveu.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Memórias Póstumas de Brás de Oliva Domingos


Não sei ler quadrinhos. Quando abro uma página meus olhos são automaticamente sugados pelas letras e as imagens assumem um caráter meramente ilustrativo. Fica parecendo livro infantil, não levo a sério, etc. Até hoje só tinha dado certo com Calvin e Haroldo. Mas também, temos um garoto de seis anos (visivelmente esquizofrênico e perturbado) e seu tigre de pelúcia. Não tem como isso dar errado. Aí comprei minha primeira graphic novel (nome fresco pra história em quadrinhos de gente grande) por indicação de dois amigos com o gosto confiável.

Continuo achando a leitura desconfortável e preferindo apenas letras ou apenas desenhos, mas não posso deixar de reconhecer o mérito de Daytripper. Os quadrinhos são de dois irmãos gêmeos, os brasileiros Gabriel Bá e Fábio Moon, e foram lançados primeiro no exterior e depois traduzidos para o português. Fala sobre a vida de um romancista que trabalha como escritor de obituários pra um jornal da cidade. Não dá pra falar muito sobre a trama, porque a estrutura é particularmente sensível a spoilers, mas não espere uma narrativa das mais clássicas. O livro brinca com você desde o primeiro capítulo e fica clara a intenção de te fazer abrir a guarda e permitir que a obra ultrapasse as barreiras físicas.


Boa parte do encanto de Daytripper se deve a exuberância visual dos traços de Fábio Moon e Gabriel Bá. Cada página é construída com a mesma paleta de cores, pra tornar a leitura ainda mais sensorial e o desenho é levemente despojado, mas sem deixar os detalhes de lado. Tem sempre uma xícara de café, uma fumaça de cigarro ou um porta-retratos pra tornar o cenário crível e nos aproximar do protagonista.

Por tratar de temas muito grandiosos: como amor, vida e morte (Severina), Daytripper às vezes não consegue evitar a cafonice. Alguns trechos parecem tirados de livros de autoajuda, o que, felizmente, não compromete o enredo. Esse se mantém coerente e interessante até a última página (belíssima, por sinal). Terminei de ler satisfeito por ter vencido esse preconceito bobo e conseguido curtir um livro com mais de 200 páginas de quadrinhos e balões. Acho que até ensaiei umas lágrimas no capítulo final.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Mas o diabo do tambor...


Estava lendo esse conto do Machado de Assis pra uma prova que, graças à greve das federais, não aconteceu; e tive espasmos de prazer com o último parágrafo. A história é desse menino, o Pilar, que perdeu uma moeda de prata, conquistada num negócio mal sucedido com Raimundo (seu colega interesseiro), por causa de um menino dedo-duro chamado Curvelo. O professor, indignado com Pilar e Raimundo, não pensou duas vezes e jogou a moeda pela janela da escola. No dia seguinte, Pilar acordou com o firme propósito de encontrá-la antes de ir pra aula:

"De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...

Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma cousa:

Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor..."

E como eu entendo o Pilar! Aceito perfeitamente que ele perca todo e qualquer propósito quando confrontado com o barulho dos tambores. E até me compadeço. Porque meus tambores têm sido cada vez mais irresistíveis. É recorrente isso de sair de casa com um objetivo claro e tempos depois dar comigo na Praia da Gamboa, maltrapilho.

Ontem meu tambor foi o Song Pop e as 30 pessoas incríveis e insones que jogam comigo. Amanhã pode ser uma série, um romance barato, o Tumblr, Google Reader, YouTube... São muitas as chances de seguir marcha na direção oposta. Porque o dia está lindo, visto calças amarelas e eles estão rufando.