segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Noves Fora

Hoje esbarrei com a morte e não era nem nove da manhã. Voltava de uma clínica onde não pude renovar minha carteira de motorista (vencida há dez meses) porque o DETRAN exige uma foto 3x4 diferente da que está na CNH vencida. A minha era igual. Eu adorava aquela foto, mas não pude usar. E fui embora chateado com o sono que havia perdido à toa. Vinha pela calçada remoendo meus pequenos problemas como se não houvesse alguém mais azarado no Guará. Vi quando um carro do corpo de bombeiros chegou de sirene ligada e encostou na calçada e de onde saiu um bombeiro apressado, olhos fitos na pequena multidão que se aglomerava do lado de fora de uma agência do Banco do Brasil. Meu caminho era passar por ali. E meus olhos tiveram que cruzar o vidro. Do lado de fora, uma senhora estendia as mãos para frente, como se lançasse um feitiço. Exigia que o sangue dele circulasse dos pés à cabeça, ó Pai, que Tua força esteja aqui nesta manhã. Do lado de dentro, vi, como quem não queria ver, um senhor obeso caído no chão. Tentavam reanimá-lo, mas sua barba branca seguia imóvel na cara. Não quis fazer volume, peguei meu ônibus e segui viagem, ainda que um pouco sombrio. Sumiram meus problemas menores. Pensei no azar que devia ser morrer no dia do pagamento. Pensei na beleza de uma morte em plena agência bancária. Nos significados que tudo isso tem antes das nove da manhã. Depois, já na rodoviária, pensei que era melhor tirar logo a foto 3x4. Fiquei com cara de mongol e desde então tenho pensado nisso. No que fazer com 9 fotos horríveis.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Realmente Difícil

Difícil não é ter que passar uma noite em claro, percorrer 2km de campus atrás de uma assinatura, atrás de um grampeador, atrás de uma sombra, subir a L2 num meio-dia, pegar ônibus custando os olhos da cara, fazer cadastro em  edifício do governo, esperar pra ser atendido e só então conseguir o que você quer. Difícil mesmo é fazer tudo isso e ainda assim não conseguir.

Adoro que, pra religião, tudo pode ser justificado como bênção ou provação. Estou orando todos os dias, lendo a Bíblia, pagando minhas ofertas, guardando os 10 mandamentos e tudo o que eu quero é um carro (ou um emprego, ou encontrar alguém que me ame). Se eu consigo o carro, devo agradecer, pois fui abençoado, amém! Mas se eu não consigo.... Também tenho que agradecer, porque estou sendo provado, Deus está me dando a chance de crescer. Amém também.

Nunca leu a história de Jó? Enquanto você não estiver tão fodido quanto ele, não tem o direito de reclamar. Não existe garantia. Deus, assim como a vida, tem uma justiça que foge á lógica humana (ou que só se faz no pós-vida).

Às vezes você vai deixar de dormir, vai suar, vai fazer o melhor que você pode, e vai conseguir o que pretende. Isso é difícil. Mas às vezes você simplesmente não vai conseguir. E é aí que cabe o pulo do gato. Não adianta fazer bico e se revoltar contra Deus, ou contra a Natureza. Ela faz isso justamente pra expandir seus próprios limites. É uma tarefa tanto nossa, quanto da formiga, dos cachorros, das plantas. Ou você acha que sempre que a saúva se esforça, ela consegue levar a plantinha pro formigueiro? Não. Às vezes você vem com suas Havaiannas 42 de borracha e em 1 milésimo de segundo acaba com o trabalho de uma vida inteira. Não foi justo. Ela era uma formiga boa. Ela nunca matava o serviço, sempre andava na fila, respondia a chamada, era até bonita.

Às vezes você recebeu uma informação errada, pegou um engarrafamento, faltou uma assinatura, e não acho que Deus tenha a ver com isso, como também não acho que o dono das Havaiannas tenha premeditado a morte da formiga. Os Deuses e a Natureza são e não são a mesma coisa. Se pautam pela lógica, pelo esforço e pela justiça, mas também se pautam pela sorte, pelo desejo e pelo caos.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Edukators


Assisti esse filme alemão com uns 14 anos. Acho que me formou um pouco politicamente. Nele, três amigos tinham o costume de invadir mansões enquanto os donos viajavam, e não roubavam nada, não estragavam nada, mas mudavam tudo de lugar. Quando os donos chegavam, se deparavam com os móveis empilhados na sala de estar. A lição era clara (e, se não me engano, eles até deixavam um bilhete), vocês não estão seguros.

Já faz 5 anos que dou aula particular e sempre tentei mostrar pros alunos que eles não estão seguros. A maioria mora no Lago Sul, veste AppleWatch e joga videogame usando óculos de realidade virtual. São crianças, claro, e a gente fica até com pena de já terem opiniões tão preconceituosas, mas são crianças somente até o dia em que não serão mais.

Dar um reforço no português, pra quem já tem, além de todas as condições ideais para o estudo, a garantia de uma assistência e renda, se pá, vitalícia, é sim empoderar o empoderado. Não posso fazer outra coisa, se não quiser perder o emprego, além de manter as notas dessa criança no topo. Garantir a vaga dela, que sempre esteve garantida.


É um esforço mínimo, esse de bagunçar os móveis da mansão. Quase não muda nada. Mas enquanto o jovem lê algo como O Conto da Vara, ou quando escuta Geni e o Zepelim, mesmo que seja no iPhone 7, ou quando se reconhece como um agressor, ou quando reconhece a empregada doméstica como um ser humano, você sente que está não só empoderando o empoderado, mas também mexendo um pouco com os seus brios. Trazendo à tona seu medo mais secreto; que a classe de baixo se volte contra eles e invada sua casa e bagunce seus móveis.