Dois mil e catorze e eu acabo de descobrir esse gênero chamado ensaio. Claro que já tinha lido alguns ensaios na minha vida, mas nunca tinha me dado conta de que o nome daquilo era ensaio. Enfim. Acabei viciando. Gastei dinheiro no Kindle, investi tempo e saúde e conheci David Foster Wallace, o autor de Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo.
Quando eu digo conheci, é conheci realmente. E isso é uma das coisas legais de se ler uma coletânea de ensaios (principalmente a coletânea de ensaios de um cara que tem a cabeça como a do David Foster Wallace). O mergulho na mente, na capacidade narrativa e descritiva do autor é tão profundo que, por vezes, você se pega pensando como um D. F. Wallace em plena praça de alimentação do Conjunto Nacional, o que torna a vida inviável. Por outro lado, você, de certa forma, faz um amigo (vomitem, ridículos). Você passa horas numa conversa sem volta com esse homem que te faz rir e te faz pensar e quase te faz dormir, antes de te assaltar com uma construção genial e te fazer acordar. É um pouco estranho, mas você se acostuma (e no final, até ama).
O livro reúne alguns ensaios sobre, por exemplo, cruzeiros de luxo, a problemática de se cozinhar lagostas ainda vivas e as razões pelas quais Federer é o melhor ser humano que já pisou neste planeta. Todos muito bem escritos. Cheios de detalhes precisos, jornalísticos e, ao mesmo tempo, completamente descompromissados com as coisas "naturalmente" primordiais. Uma das coisas mais legais do D. F. Wallace é essa capacidade de enxergar aquele detalhe que, à primeira vista, não parece muito digno de nota, mas que cresce com o texto e encontra correspondentes muito íntimos na nossa própria memória. Daí talvez a certeza de ter conhecido um ensaísta que se matou há seis anos. Seu texto tem a capacidade de nos ensinar algumas coisas fantásticas e, ao mesmo tempo, deixar a sensação de que, no fundo, nós sempre soubemos essas coisas.
Fiquei um pouco angustiado do meio pro final. Não pela qualidade do texto (até porque o texto é realmente impecável), mas porque Wallace tem uma visão muito pessimista, cíclica e perdida da existência humana. No meu ensaio preferido dessa coletânea (Isto É Água, que na verdade é um discurso de formatura que Wallace teve que fazer para alguma turma) ele descreve, com precisão, esse ciclo de fracassos e fala sobre a única alternativa possível. Só por esse trecho, o livro já valeria a pena.
"A única verdade com V maiúsculo é que quem decide como vai tentar ver as coisas são vocês mesmos. Essa, a meu ver, é a liberdade de uma educação autêntica, de aprender a ser bem ajustado: poder decidir conscientemente o que tem significado e o que não tem. Poder decidir o que venerar…
Pois aqui está uma outra verdade. Nas trincheiras cotidianas de uma vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é "o que" venerar. E se existe uma ótima razão para talvez venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual - seja Jesus Cristo ou Alá, yhwh ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que provavelmente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. (...) Quem venerar o poder vai se sentir fraco e amedrontado, e precisará de cada vez mais poder para conseguir afastar o medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.
Essas formas de venerar são traiçoeiras não por serem malignas ou pecaminosas, mas por serem inconscientes. São configurações padrão. É o tipo de veneração pelo qual nos deixamos levar gradualmente, dia após dia, e que nos torna cada vez seletivos em relação ao que vemos e a como atribuímos valor às coisas, sem jamais termos plena consciência do que é isso que estamos fazendo. E o suposto 'mundo real' nunca desencorajará vocês de operarem nas configurações padrão, porque o suposto 'mundo real' dos homens, do dinheiro e do poder avança tranquilamente movido pelo medo, pelo desprezo, pela frustração, pela ânsia e pela veneração do ego. Nossa cultura atual canalizou essas forças de modo a produzir doses extraordinárias de riqueza, conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores de reinos minúsculos, do tamanho dos nossos crânios, sozinhos dentro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem seus méritos. Mas é óbvio que há liberdades dos mais variados tipos, e no vasto mundo lá de fora, onde o que importa é vencer, conquistar e se exibir, vocês não ouvirão falar muito do tipo mais precioso de todos. O tipo realmente importante de liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros e de se sacrificar por eles inúmeras vezes, todos os dias, numa miríade de formas corriqueiras e pouco excitantes. Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ter aprendido a pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a 'corrida de ratos' - a sensação permanente e corrosiva de ter possuído e perdido alguma coisa infinita."