sábado, 28 de julho de 2012

E agora, José?


Durante muito tempo esperei por essa viagem pra Belo Horizonte, exatamente como uma criança espera pelo Papai Noel. Fantasiando, é claro, uma perfeição que nunca existiu na capital mineira. Voltei essa semana e me vi completamente perdido, sem saber onde enfiar toda aquela ansiedade que antes tinha um alvo fácil. O melhor da festa é mesmo esperar por ela.

Agora me pego revivendo tudo com uma nostalgia absurda e uma melancolia torturante. Tudo mitificado, muito maior e muito melhor do que realmente foi. E só penso naquelas pessoas com quem dividi momentos de extrema intimidade e das quais não sei nem o nome. Viraram rostos cada vez mais desfocados e impessoais, o que me permite confirmar que eram lindas, já que as únicas testemunhas são meus olhos míopes e cansados de três da manhã. Onde elas estariam agora? O que fazem numa tarde de sábado?

Na Wikipédia tá escrito que nostalgia é um sentimento que surge a partir da sensação de não poder mais reviver certos momentos da vida. E eu tenho esse hábito de pegar a nostalgia pelo braço, andar com ela pela casa, oferecer meu travesseiro, etc. E ela adora, né? Se esparrama... Acaba ocupando mais da metade do colchão e me reservando um espaço mínimo entre a fronha e os livros que não param de se acumular no criado mudo.

Passo dias com uma enorme sensação de E agora, José? que, pra mim, é a melhor descrição de nostalgia instantânea. É aquilo de querer abrir a porta e não existir mais porta. De querer voltar pra Minas e Minas não há mais.

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

 Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…

Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 24 de julho de 2012

Debaixo dos Caracóis do Seu Cabelo


Em seu novo filme, a Pixar se rende aos contos de fadas e à forma clássica de contar histórias, mas isso não significa que Valente seja ruim ou dispensável. Muito pelo contrário. A história de Merida, uma princesa rebelde, e sua relação com a mãe controladora são um primor visual e narrativo.

É impossível assistir Valente e não reparar nos cabelos da protagonista. Não só pela animação deslumbrante, que faz cada fio ruivo ter vida própria, mas porque o cabelo surge como uma metáfora óbvia para o comportamento das personagens. Merida mantém suas madeixas encaracoladas ao vento, como símbolo do seu anseio por liberdade, já sua mãe tem cada fio sob controle, num penteado simétrico e perfeito. Logo fica claro que as diferenças não se resumem apenas ao ramo capilar.


Valente é um filme sobre relacionamento entre pais e filhos (tema que a Pixar já havia abordado em 2003, com Procurando Nemo). Só que em vez de um pai superprotetor que vive sob o medo de perder seu unigênito, aqui o conflito se dá pelo excesso de expectativa de uma mãe e sua dificuldade em respeitar a liberdade da filha. Nas duas histórias fica clara a transformação dos personagens, como consequência de uma trajetória de autoconhecimento, mas em Valente essa transformação é literal.

Com personagens carismáticos e momentos engraçados, o novo filme da Pixar deve ser interessante tanto para os pais (coisa que Carros 2 não foi) quanto para os filhos (coisa que Wall-E não foi). E esse é um equilíbrio que, inevitavelmente, reduz a força da trama. Por mais bem executado que seja, um conto de fadas tem suas correntes e todo filme que opte pelo gênero precisa escolher se vai quebrar as regras e virar uma paródia (o que Shrek fez) ou respeitá-las e ficar limitado a um certo campo narrativo. Valente escolhe a primeira opção e, mesmo aprisionado, consegue ir longe.


PS: Todo mundo já sabe que em filme da Pixar não dá pra chegar atrasado. O curta que antecede Valente é um banquete visual (assista em 3D) e tem na sua ideia uma simplicidade e ambição comum a outros trabalhos do estúdio, como Parcialmente Nublado.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Apartamentos em Earlybird

A gente percebe que está na hora de morar sozinho quando começa a reparar demais nas casas e apartamentos dos outros. E umas coisas que nunca tinham passado pela sua cabeça tornam-se dúvidas relevantes. Quanto custa uma geladeira? Quanto custa um microondas? Quanto tempo dura um botijão de gás? Quanto tempo dura um rolo de papel higiênico? É possível pagar uma lavanderia todo mês? É possível pagar uma TV à cabo? Quantos pacotes de miojo se pode comer antes de uma infecção alimentar?

É engraçado, porque nunca mais consegui ver um filme ou série sem reparar nas moradias dos personagens e ficar classificando os cômodos em possíveis ou impossíveis. Por exemplo: nos filmes do Woody Allen os apartamentos são sempre lindos e aconchegantes, mas alguns deles são plenamente possíveis (contanto que você não ligue pras marcas e crie uma decoração genérica baseada somente no aspecto visual dos cômodos). Já nos filmes da Nancy Meyers todos os cenários parecem tirados direto de uma edição da Casa Cor. Aí é melhor nem perder tempo sonhando.

Girls, a série nova da HBO, conta a história de quatro meninas que moram em Nova York, mas, ao contrário das personagens de Sex and The City, nunca têm dinheiro, usam roupa de marca ou frequentam restaurantes badalados. São meninas que até pouco tempo eram sustentadas pelos pais, mas agora precisam arcar com aluguéis exorbitantes (estamos falando da capital do mundo), empregos ridículos e namorados igualmente ridículos. E a série é cheia desses apartamentos possíveis (considerando Brasília, não Nova York, é claro). Assisti a primeira temporada com os Classificados do lado.

E meio que comecei a organizar umas referências do que seria um apartamento ideal. Separei essas fotos do Tumblr e cheguei à conclusão de que minha casa dos sonhos é um lugar pequeno, cheio de livros e fumaça, com cores pouco saturadas e um filtro do Instagram.




domingo, 1 de julho de 2012

O Manoel Carlos do Mundo


Fui conferir ontem o novo filme do Woody Allen. Saí de casa logo depois do almoço e peguei um ônibus pro Cine Cultura, no Liberty Mall, onde a primeira sessão estava marcada pras 14h. Cheguei e dei de cara com o aviso de que as cópias de Para Roma, com Amor não haviam chegado a tempo (parece que o avião que trazia as películas sofreu um atraso) e o filme só seria exibido na semana seguinte. Indignado, tive que engolir o choro e ir pro outro lado da cidade, onde a única sessão disponível era numa sala VIP. O ingresso custava assustadores 44 reais e se servia pipoca com azeite de oliva. Só não fiquei mais revoltado porque a poltrona é realmente maravilhosa e o filme, na falta de outro adjetivo, um pitéu.

Confesso que ainda prefiro o Woody Allen de New York e que tenho certa preguiça de cidades históricas como Roma, mas entendo que ele faz isso por dinheiro e nunca subestimo sua capacidade de transformar um projeto de incentivo ao turismo em pequenas obras de arte (como ele fez com Vicky Cristina Barcelona e Meia-Noite em Paris, por exemplo). Dessa vez a capital italiana é o palco de quatro histórias de amor completamente independentes, costuradas pela inútil observação de um guarda de trânsito.


Costumo dizer que Woody Allen é o Manoel Carlos do mundo (ou que o Manoel Carlos é o Woody Allen do Brasil, dependendo da importância que você dá pra cada um deles). Porque ambos criam essa atmosfera lânguida de cenários encantadores e personagens quase etéreos que passeiam por restaurantes charmosos e hotéis refinados, conversando, mentindo e cometendo adultério. Em Para Roma com Amor é tudo tão classudo que você acaba nem ligando pra algumas obviedades como a história da celebridade instantânea (Roberto Benigni) ou da prostituta que precisa fingir que é uma esposa recatada (Penélope Cruz).

Os pontos altos do filme são a atuação do próprio Woody Allen (que, felizmente, continua hilário) e o triângulo amoroso envolvendo um estudante de arquitetura (Jesse Eisenberg), sua namorada (Greta Gerwig) e a melhor amiga da sua namorada (Ellen Page). Nesta última, o diretor aposta no realismo fantástico, onde situações completamente plausíveis e verossímeis são intercaladas com absurdos obviamente improváveis. E ele faz isso de forma natural, sem causar estranhamento ou perder a credibilidade.

Para Roma, com Amor não é um dos grandes filmes de Woody Allen, mas é preciso lembrar que estamos falando de um cara que faz um filme por ano e que, ao contrário dos seus colegas, mantém um invejável padrão de trabalhos bons, ótimos ou excelentes. Ainda assim, essa é uma viagem que vale a pena. Esteja certo de que você vai se divertir com um filme leve e agradável, que não subestima sua inteligência, e, se tiver sorte, ainda pode fazer tudo isso enquanto come uma pipoca com azeite.