sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Sobre Meninos e Cães


Eu tinha 8 anos quando você nasceu. Redondo, peludo e com uma manchinha branca na cabeça. Eu só conseguia pensar que nunca existiria um cachorrinho tão adorável, engraçado e sem jeito. Éramos duas crianças e tivemos uma infância maravilhosa juntos. Mas você cresceu, ganhou personalidade e definiu quais eram suas prioridades na vida: comida, nossa companhia e bolinhas de tênis (mas a ordem pode estar errada). Ninguém correu tanto, Buddie. Você era incansável! Jogar a bolinha pra você pegar era não só uma das coisas mais divertidas do mundo como também uma das mais surpreendentes. Acho que seus genes de caçador britânico se manifestavam de tal forma que nenhuma barreira era suficientemente grande. Nunca vou esquecer quando a bolinha caiu no lago do parque e você, sem pensar duas vezes, pulou, nadou e voltou com ela na boca, like a boss.

Sabe? Ter um cachorro muda a vida da gente. Você foi a primeira criatura que parecia depender de mim e que me amava sem esperar absolutamente nada em troca. E era recíproco. Poucas coisas vão ser mais gostosas que seu abraço, quando você ficava sobre duas patas, eu agachava e, de um jeito mágico, nos abraçávamos exatamente como dois humanos. Poucas coisas vão ser mais tristes que seus uivos pro caminhão de gás e sua decepção posterior, ao perceber que o som de Pour Elise já havia desaparecido no fim da rua e não tinha mais necessidade de continuar cantando. Poucas coisas vão ser mais brilhantes que seus olhos. Um brilho que acabou cedo demais.

A catarata precoce tornou tudo opaco e sem vida e as coisas ficaram bastante confusas. Postes, degraus e buracos começaram a surgir e mudar de lugar sem o menor aviso. Era difícil. E logo os ossos começaram a reclamar, porque passar a vida correndo atrás de bolinhas de tênis também tem seu preço. Os últimos meses devem ter sido difíceis. Desculpa pela distância, viu? Desculpa. Mas acho que foi melhor assim. Eu não conseguiria te ver partir.

E você foi tão forte, cara! A morte já tinha te visitado outras duas vezes, mas parece que comer veneno e passar 10 minutos na boca de um pit bull não foram suficientes pra te derrubar. (Tem certeza que você é um cachorro e não, sei lá, um touro?) A única coisa capaz de te vencer foi mesmo o que vence todos nós: o tempo. Essa força invisível, violenta e desgraçada que vai destruindo nosso corpo, mudando nosso rosto e levando quem a gente ama.

Hoje eu só queria agradecer por esses treze anos de vida do seu lado. Pela sua fidelidade, carinho e amor sem igual. Por conseguir transformar todos os seus instintos e toda a sua irracionalidade em compreensão. Porque nem toda a ciência do mundo vai conseguir explicar nossas conversas. Obrigado por estar sempre lá.

Dizem que na terça-feira uma criança jogou a bolinha pra você buscar. Espero que você tenha se divertido com ele. Tudo que eu queria agora era ser esse menino e poder te jogar a bolinha mais umas duas ou três vezes antes de sentar com você embaixo de uma árvore pra discutirmos como a vida não faz sentido e é cheia de injustiças. A maior delas, sem dúvidas, é deixar um coração tão bom quanto o seu simplesmente parar de bater.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Estejam Online


A carência fica bem mais evidente na madrugada, porque rola um desespero, né? Quatro da manhã e as chances de encontrar alguém interessante online são mínimas. O coração acelera só de pensar na possibilidade de um vácuo infinito que duraria até o dia seguinte, quando as pessoas aos poucos acordariam e (sem muita paciência) ouviriam minhas mazelas. E quase nunca há o que dizer. É só a necessidade de ser ouvido, de perceber algum tipo de comunicação e sentir que você não é o único no mundo.

Durante muito tempo pensei em morar sozinho como um ideal de futuro perfeito. Sempre me achei muito pouco carente de companhia. As coisas que mais me agradam são, em sua maioria, entretenimentos solitários. E minha maior preocupação era ter um bom livro à disposição no criado mudo. Não sei mesmo quando foi que comecei com essa necessidade de comentar o tal livro com alguém. E de marcar o filme como visto no Filmow, o episódio como assistido no Orangotag... E trocar as experiências. Nem sei se faço isso pela troca mesmo, ou pelo desejo infantil e canalha de ser ouvido.

A internet fez uma coisa péssima: facilitou a interação. Facilitou de tal forma que a gente nem sabe se aquilo pode ser considerado interação. Assim fica impossível levar a sério as amizades. Ninguém está realmente fazendo alguma coisa pelo contato. Basta permanecer, trocar um ou dois emoticons e ir dormir se sentindo popular como nunca. Mas não queria entrar nessa da guerra de egos, da vaidade louca... Não. Só queria pesquisar um pouco o que tem motivado meus surtos de carência online.

Porque pior que ser carente só mesmo ter noção desse estado. E quanto mais tento me controlar, guardar as fotos e calar a boca, mais tweets desnecessários, publicações vergonhosas e posts como este.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Transtornos Afetivos

Quando dei por mim, tava pesquisando sobre transtornos afetivos e me encaixando em todos os perfis. Tô com esse novo vício de estudar quadros patológicos da psicanálise como se fossem signos. E ir descobrindo que não só minha família, mas também meus amigos e toda a humanidade são bem doentes.

Arrumaram pra mim os telefones de uns psicanalistas com boa fama. Dizem até que o plano cobre.

Talvez eu marque uma consulta.

Não sei por onde começar.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Problemas com o Miocárdio


Nada pode ser mais prejudicial à arte que viver. Eu tenho tido particular dificuldade em encontrar ânimo pra ficção e pra toda a concentração e apreciação que ela exige. Porque tudo começou a parecer bastante ridículo agora. A gente vai ganhando certa noção do absurdo que é trabalhar por horas numa história que não tem a menor razão de ser e começa a se questionar se seria realmente válido trazer isso ao mundo. É como ter filhos. Ninguém sente falta deles enquanto não existem. E até quando existem, às vezes, pensamos se não teria sido melhor deixá-los onde estavam.


E eu tô cada vez mais relapso com os contos e com esse futuro provável romance que tenho guardado na cabeça e nuns papéis espalhados pelo criado mudo. Lirismo passou longe. Nunca estive tão entregue ao cinismo dos novos tempos e não sei o que fazer pra recuperar a sensibilidade. A ansiedade tá pulsando e destruindo toda e qualquer inspiração. Ninguém mais tem tempo pra pagar de Shakespeare.


Escrever no blog é um pouco mais fácil. Primeiro porque existe audiência (ridícula, mínima, mas ainda assim uma audiência) e segundo porque isso aqui é meu templo de autoafirmação. É fundamental ter um lugar pra escrever três ou quatro parágrafos por semana dizendo coisas que te identificam como a pessoa que você quer ser. Ou a pessoa que você gostaria que os outros pensassem que você é. É um jeito de economizar com, sei lá, psicólogo? Namorada? Drogas?


Posso dizer que hoje começo a entender os babacas da escola. Aqueles meninos que, minha nossa, preferiam jogar bola ou beijar meninas no recreio em vez de ir pra biblioteca ler Nelson Rodrigues. E como era divertido passar por eles com o livro debaixo do braço e uma sensação absurda de superioridade. Mas eles só estavam num outro nível. Não inferior, nem superior, mas diferente. Um nível onde as emoções são mais orgânicas e o palpitar no coração vem direto do toque, do suor, da saliva... E pra alguém que durante muito tempo só sentiu o coração bater mais forte por causa dos livros e filmes, esse novo estilo de vida tem sido um grande catalisador de infartos.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Belos, Malditos e Incompreendidos


Terminei semana passada Os Belos e Malditos, romance de F. Scott Fitzgerald que narra a trajetória decadente de um casal rico de Manhattan. Anthony e Gloria são lindos e inteligentes, vieram de famílias instruídas, são bem relacionados e tinham tudo para dar certo, mas não dão. E as coisas desandam porque nenhum dos dois soube lidar com a maturidade. Enquanto Gloria se deixava levar por uma vaidade louca e um romantismo doentio, Anthony foi tragado pelo álcool, cigarro e pelas festas intermináveis que o casal promovia em sua casa. Coincidentemente, terminei o livro justamente na época de maior esbórnia da minha vida. E tudo ficou com a maior cara de aviso.

Mas não acho que o livro seja panfletário, muito pelo contrário. Fica claro que Fitzgerald era fascinado por esse estilo de vida irresponsável que mais tarde veio caracterizar a Era do Jazz. Suas descrições são cheias de adjetivos que elevam e seduzem e em momento algum a culpa é posta na bebida ou nos festejos. A culpa é de Anthony e Gloria. Eles que viviam numa inércia retumbante. Passavam semanas sentados: soltando baforadas de cigarro, enchendo taças de vinho e vendo seu dinheiro desaparecer.

O problema é que ao longo de toda a narrativa, as atitudes do casal parecem bem razoáveis. Anthony era um escritor talentosíssimo, só precisava de tempo pra gerar a obra-prima que, de certo, carregava com ele em algum lugar. E Gloria, com sua beleza e carisma únicos, nasceu pra ser atriz de cinema. Qualquer coisa menos que isso seria um crime contra os deuses da arte. Só que o livro acaba e Anthony não publica nada. E Gloria nunca faz um filme. E os dois permanecem fracos demais pra levantar do sofá.

"Então amadureci e abri mão da beleza das ilusões encantadoras. Minha fibra mental tornou-se áspera e meus ouvidos, tremendamente aguçados. A vida brotou como um mar em volta de minha ilha, e, dentro em breve, eu nadava. (...) O tédio, que não passa de um outro nome e um disfarce frequente da vitalidade, tornou-se a alavanca inconsciente de todos os meus atos. A beleza, eu a tinha ultrapassado, vocês compreendem. Eu amadurecera."

Separei outros dois trechos pra quem quiser saber mais:

Sobre Gloria:

"Aposentou-se. Ela que dominara incontáveis festas, que aspergira sua fragrância por tantas salas de baile, diante do tributo amoroso de tantos olhares parecia não ligar mais. Quem agora se apaixonasse por ela era logo dispensado, quase com raiva. Ela saía indiferentemente com os sujeitos mais indiferentes. Vivia rompendo compromissos, não como no passado, a partir de uma segurança tranquila de que ela era impecável, que o sujeito domesticado por ela voltaria como um animal domesticado - mas com indiferença, sem orgulho nem desprezo. Ela raramente se inflamava contra os homens; bocejava nas suas caras. Dava a impressão – tão estranha – à sua mãe, de estar ficando fria."

Sobre Anthony:

"– Trabalho! – zombou ela - Ah, pobre tipo! Seu enganador! Trabalho: isso significa grandes arrumações na escrivaninha e nas luminárias, fazer muita ponta nos lápis, e "Gloria, pare de cantar!", e "Por favor, mantenha esse diabo do Tana longe de mim!", e "deixe que eu leia minha primeira frase para você", e "levarei muito tempo para acabar, Gloria, por isso não fique acordada me esperando", e um tremendo consumo de chá e café. E só. Dentro de mais ou menos uma hora, ouço o velho lápis que deixou de rasgar o papel e dou uma olhada. Você tirou um livro da estante e está "consultando" alguma coisa. Em seguida está lendo. Em seguida bocejando – e tome cama, se revirando para lá e para cá porque está tão entupido de cafeína que não consegue dormir. Duas semanas depois e toda a cerimônia se repete."

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Aos Amigos que Restam

Desculpa pelo descontrole. Pela total falta de critério, dignidade e lucidez. As coisas andam muito bagunçadas, incrivelmente divertidas e eu não tô sabendo me controlar.

Desculpa por usar as mesmas roupas sempre, mas não tô tendo dinheiro pra renovar o armário. Nem tempo pra lavar os tênis. Desculpa pela coca-cola antes das 8h, pelos miojos de madrugada, pelas olheiras cada vez mais profundas e charmosas. Pelos acessos de carinho e ternura. Pelos acessos de raiva e loucura. Desculpa pelas lágrimas. Desculpa pelas conversas que não levam a lugar nenhum e sempre acabam comigo reclamando das mesmas coisas. Desculpa pela vergonha, pelos transtornos psicológicos, pelas músicas repetidas, pelos filmes repetidos, pelos livros atrasados. É que fico meio encabulado quando desperdiçam obras de arte. É que descobri que só existe salvação por meio delas.

Desculpa pelas piadas cada vez piores, pelo humor cada vez mais ofensivo, pelas risadas cada vez mais débeis e pelo sorriso cada vez mais perigoso. Inclusive decidi que não devo mais tirar fotos sorrindo. Porque além de parecer infantil, pareço feliz.

Desculpa por estar cada vez mais distante e ainda assim contar segredos cada vez mais cabeludos. Por jogar todo esse peso em cima de vocês, e ficar esperando uma resposta, com meus olhinhos brilhantes. E as respostas nunca vêm.

Desculpa por parecer entediado, por cortar a fala dos outros e dar pouca atenção aos detalhes. Tenho um descompasso grave na assimilação do mundo. Tudo me vem aos saltos. Como pequenos sustos, seguidos de um longo e eterno calafrio.

Desculpa pelo medo. Por preferir às vezes calar a ter que dizer as coisas que me machucam.

Desculpa pela poeira. A faxineira sumiu tem umas três semanas.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Mixtape - Wrong, I Know, Killing Someone

"Everyone enjoys a nice murder", foi o que Hitchcock disse há alguns anos. E pra contemplar melhor essa modalidade de entretenimento, resolvi fazer uma mixtape só de assassinatos. Tem gente que matou sem querer, tem gente que fez isso por amor, tem gente que confessa seus crimes pra mãe e tem gente que mata a própria. Tem de patriota a femme fatale, de psicopata a Kátia Flávia. Todos com motivações bastante compreensíveis, é claro.

Bom som e não esqueçam de limpar o sangue do carpete.





A capa e contracapa foram feitas pela Carol Ramos e trazem as assassinas de Chicago estampadas. Carol, inclusive, foi a responsável por me apresentar ao 8tracks (esse site maravilhoso, onde vocês poderão ouvir todas as mixtapes sem precisar fazer downloads e ainda descobrir uma infinidade de  outras coletâneas com os mais diversos temas). É uma rede social de mixtapes, pode isso?

Outras Mixtapes:

Músicas de natal: Por um Natal Sem Uva-Passa
Vozes sexys femininas: So Wet, So Tight
Músicas depressivas: Hoje Vou Te Fazer Chorar
Filmes do Tarantino: Tarantino's Jukebox

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

É Tudo Verdade


Quando você se propõe a escrever um blog pessoal, é óbvio que esperam, no mínimo, um nível Patrícia de exposição. E eu invejo demais essa gente que parece não dever nada pra ninguém. Essa gente com muita sinceridade e pouca censura. Porque só assim dá pra fazer um blog realmente pessoal e ganhar a confiança dos (cof cof) leitores.

E juro que a intenção era essa. De falar dos meus problemas e conflitos sem pensar muito nas consequências. Mas neuróticos não têm essa desenvoltura. A gente pensa num assunto e automaticamente surgem quinhentas projeções de todo mundo que vai ter acesso ao texto e de tudo que podem pensar; e sua voz vai ficando cada vez mais difusa. Acabo por desistir de tudo e falando de um filme aleatório cuja análise não me comprometa.

Minha vida anda muito estranha, com uns problemas perigosos demais para virem  a público. Então criei esse personagem, que sou eu mesmo, só que com pudores. Esse personagem que só consegue se comunicar através dos filmes e séries que viu, das músicas que ouve, dos retweets no Tumblr. Tudo pra tentar dizer alguma coisa que não ficaria bem em prosa.

Minha vida anda muito movimentada (no campo das ideias, que fique óbvio), mas ela já não tem espaço aqui. Aqui quem fala é esse personagem previsível e cuidadoso. E ele, ultimamente, não tem tido muito assunto.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Missão Julie & Julia


Existem duas coisas bastante incompatíveis na minha personalidade: a péssima alimentação e a tendência a hipocondria. Porque eu sigo comendo mal (é um ponto pelo qual já parei de lutar), mas agora sinto que a qualquer momento podem aparecer as úlceras e pedras nos rins que aguardo com tanta ansiedade. Soma-se a isso meu medo de decepcionar a família e o que temos são sonhos bizarros em que estou deitado numa cama de hospital, comendo nuggets e chorando, enquanto meus pais falam: "eu avisei".

E ando tão cansado dessa minha vida sedentária, de conservantes, corantes e acidulantes, que cheguei a cogitar fazer musculação numa academia aqui perto de casa. Estou com tempo de sobra e tem o incentivo estético que, atualmente, é a única coisa que me faria mudar de vida. Mas eu me conheço tão bem que não vou cair nessa cilada de novo. Porque já fiz academia uma vez, né? Há alguns anos. E foi patético. Eu passava toda a série tentando enganar o instrutor, pulando aparelhos e errando a contagem de propósito. Não dá pra pagar por isso.

Pensei em voltar pra natação, que foi o único esporte que algum dia me empolgou. Lembro de treinar por duas horas diárias e ter sido, inclusive, convidado a competir pelo Sesi. Também adorava a sensação pós-treino. Aquela morosidade agradável que se estendia pelas duas horas seguintes a saída da piscina. O corpo ainda molhado, os pulmões ainda frenéticos e uma fome sem precedentes. Mas natação não te deixa bonito (te deixa magro e esguio, é verdade, mas isso eu já sou até demais), então acaba perdendo o maior incentivo de um exercício físico regular.

Acho que vou aprender a cozinhar. Talvez eu descubra um talento oculto, uma paixão nunca dantes explorada, acabe diminuindo meu consumo de comida industrializada e, consequentemente, meu medo de doenças. Então essa é a proposta. Tô aceitando sugestão de sites com receitas fáceis e baratas para solteiros pobres e preguiçosos. Enquanto isso vou revisando meu testamento pela milésima vez.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Mas Somos Agradáveis


Cenas de um Casamento é um filme do Bergman de quase 3h que conta a história de um casal, sua separação e reencontro. Essa semana terminei um namoro longo (longuíssimo) e só tenho conseguido pensar nesse filme. Especificamente nesse monólogo de Marianne, onde ela tenta explicar pro marido a causa do fracasso do relacionamento dos dois.

"De repente, viro-me e olho para uma velha foto de escola de quando eu tinha 10 anos, pareço detectar algo que me escapava até então. Para minha surpresa, devo admitir que não sei quem sou. Não tenho a mais vaga idéia. Sempre fiz o que me mandaram. Até onde me lembro fui obediente, correta, quase humilde. Me impus algumas vezes, quando menina, mas minha mãe me puniu por minha falta de modos, com severidade exemplar. Minha educação e a das minhas irmãs tinha o objetivo de nos tornar agradáveis. Eu era feia e desajeitada um fato do qual sempre me lembravam. Mais tarde percebi que, se guardasse meus pensamentos e fosse agradável e previsível seria recompensada. A maior decepção começou na puberdade. Meus pensamentos e sentimentos giravam em torno de sexo, mas nunca disse isso aos meus pais nem a ninguém. Ser enganosa e reservada se mostrou mais seguro. Meu pai queria que eu seguisse seus passos e fosse advogada. Dei indiretas de que queria ser atriz ou fazer algo no mundo do teatro, mas eles riram de mim. Desde então, sigo fingindo, forjando meus relacionamentos com os outros, com os homens, sempre atuando, numa tentativa desesperada de agradar. Nunca considerei o que eu queria e sim o que ele quer que eu queira. Não é falta de egoísmo, como costumava pensar, é pura covardia, pior ainda, provém da minha ignorância de quem eu sou. Nosso erro foi não nos desligarmos de nossas famílias e criarmos algo que nos satisfizesse a nós mesmos".